“Senhor dos Senhores, mas não servo dos servos”.
D. João II (1455-1495 – reinando a partir de 1481), o Príncipe Perfeito, ou o “Homem” como lhe chamava Isabel, a Católica, foi um homem fascinante, quer do ponto de vista pessoal quer como político.
Sofreu como ninguém a solidão do poder, agindo sempre com determinação – e muitas vezes com impiedade – consolidando o poder régio, destruindo privilégios antigos da nobreza, aproximando-se habilmente do povo, sendo o percursor do chamado “absolutismo”.
Usando todos os meios, desde a violência à diplomacia, prepara Portugal para a constituição do seu Império.
Cultor do segredo, profundo conhecedor da natureza humana, penalizado por vários e tremendos desgostos, representa para mim o Poder quando sinónimo de dignidade.
Nesta demanda do melhor português de sempre, que é um exercício com alguma piada, é El Rei Dom João II que leva o meu voto.
“Senhor dos Senhores, mas não servo dos servos”.
«Foi el-rei D.João homem de corpo, mais grande que pequeno, mui bem feito e em todos os seus membros mui proporcionado; teve o rosto mais comprido que redondo e de barba em boa conveniência povoado. Teve os cabelos da cabeça castanhos e corredios e porém em idade de trinta e sete anos na cabeça e na barba era já mui cão, de que se mostrava receber grande contentamento pela muita autoridade que à sua dignidade real suas cãs acrescentavam; e os olhos de perfeita vista e às vezes mostrava nos brancos deles umas veias e mágoas de sangue, com que nas coisas de sanha, quando era dela tocado, lhe faziam aspecto mui temeroso. E porém nas coisas de honra, prazer e gasalhado, mui alegre e de mui real e excelente graça; o nariz teve um pouco comprido e derrubado. Era em tudo mui alvo, salvo no rosto, que era corado em boa maneira. E até idade de trinta anos foi mui enxuto das carnes e depois foi nelas mais revolto. Foi príncipe de maravilhoso engenho e subida agudeza e mui místico para todas as coisas; e a confiança grande que disso tinha muitas vezes lhe fazia confiar mais de seu saber e creu conselhos de outrem menos do que devia. Foi de mui viva e esperta memória e teve o juízo claro e profundo; e porém suas sentenças e falas que inventava e dizia tinham sempre na invenção mais de verdade, agudeza e autoridade que de doçura nem elegância nas palavras, cuja pronunciação foi vagarosa, entoada algum tanto pelos narizes, que lhe tirava alguma graça. Foi rei de mui alto, esforçado e sofrido coração, que lhe fazia suspirar por grandes e estranhas empresas, pelo qual, conquanto seu corpo pessoalmente em seus reinos andasse para as bem reger como fazia, porém seu espírito sempre andava fora deles, com desejo de os acrescentar. Foi príncipe mui justo e mui amigo de justiça e nas execuções dela mais rigoroso e severo que piedoso, porque, sem alguma excepção de pessoas de baixa e alta condições, foi dela mui inteiro executor, cuja vara e leis nunca tirou de sua própria seda, para assentar nela sua vontade nem apetites, porque as leis que a seus vassalos condenavam nunca quis que a si mesmo absolvessem.»
(Crónica de D. João II, Rui de Pina)
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