Considerações a ter em conta na questão do aborto
Não há mulher nenhuma que seja normal que aborte por prazer.
Não há nenhuma sociedade sadia que aplique a pena de morte por prazer.
A decisão de liberalizar o aborto, permitindo-o sempre que haja a vontade da mulher nesse sentido, obrigará, muito naturalmente a que o conceito “defesa intransigente da vida humana e do seu valor intrínseco” seja revisto. Ou seja a partir do momento que aceitemos que eventualmente existirão valores mais preponderantes que o valor da vida, essa visão terá que alargar-se, necessariamente e a bem da coerência moral e intelectual, ao suicídio, à eutanásia e até mesmo em relação à pena de morte.
Considero que a todos os seres humanos, em pleno gozo das suas faculdades intelectuais, é intrínseco o direito de dispor da sua própria vida, nomeadamente o de não a viver se considerar que não existam razões e argumentos para tal, e nesse sentido sou absolutamente a favor da eutanásia e aceito o suicídio.
Pessoalmente tenho muitas dúvidas em aceitar que seja legítimo que a sociedade, ou um ser humano individualmente considerado, possa decidir com eficácia sobre a vida ou morte de um ser humano que não ele próprio. Nesse sentido o aborto e a pena de morte merecem-me muitas reservas exactamente pelas mesmas razões.
A partir do momento em que um óvulo humano é fertilizado, com sucesso, por um espermatozoide humano, há vida e vida humana porque não pode haver outra coisa senão isso.
A questão do número de semanas é irrelevante. A vida existe a partir do momento que “é”, tenha essa vida dois minutos ou cinquenta anos.
No entanto, se à sociedade é dado o direito de se organizar, do ponto de vista jurídico-legal, tendo em conta o seu juízo em relação à pena de morte, que no fundo é a concessão ou não ao colectivo de decidir, perante determinadas circunstâncias, que a vida de alguém deve ser interrompida, considero que aos seres humanos, individualmente considerados, deverá assistir a mesma faculdade.
Quer num caso – aplicação da pena de morte – quer no outro – prática de aborto – estamos perante um assassínio. Um assassínio deliberado motivado por uma decisão, colectiva ou individual, ponderada, apenas distinto dos demais assassínios por um conjunto de atenuantes consideradas válidas pela moral vigente, atenuantes essas que implicam a não criminalização da sua prática.
Da mesma forma que não faz sentido condenar e prender uma sociedade inteira que decide, perante determinadas circunstâncias e à luz da moral vigente, aplicar a pena de morte, também não faz sentido condenar e prender uma pessoa que decide, perante determinadas circunstâncias e à luz da moral vigente, praticar um aborto.
Quer num caso quer no outro, em termos substantivos e filtradas as diferenças acessórias, estamos a falar de rigorosamente a mesma coisa – dispor de uma vida alheia.
O que esta questão do aborto nos deve suscitar não é uma análise das circunstâncias, mas sim uma reflexão profunda sobre qual o valor que atribuímos à vida humana à luz dos princípios de natureza moral que nos norteiam enquanto indivíduos e enquanto comunidade socialmente organizada e aceitarmos com coerência e apropriada frieza o resultado desse juízo.
Essa reflexão, tendo em conta o referendo que se aproxima e a sua natureza, pode e deve ser feita já, até porque qualquer que seja a nossa resposta ao mesmo, ela resulta da nossa análise íntima e individual tendo em conta as óbvias implicações colectivas, ou seja a nossa escolha representará, também, aquilo que nós expectamos que seja a resposta colectiva – a futura resposta da sociedade em que nos integramos – a um determinado problema.
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